quarta-feira, 11 de setembro de 2013

Aurora libertária

Um certo anarquismo surge no século XXI e remete ao movimento das primeiras grandes greves operárias
Em pleno século XXI há um ressurgir do anarquismo (não do anarquismo clássico). Valores libertários inspiram a Primavera Árabe, os movimentos dos indignados e as ocupações de espaços públicos e privados.  As críticas se voltam basicamente contra dois alvos: por um lado, a globalização neoliberal, a ganância e a insensibilidade das grandes corporações diante da fome e da miséria de milhões de pessoas. Por outro lado, mas complementarmente, os manifestantes, jovens em sua considerável maioria, criticam e rejeitam sistemas político-partidários e instituições ineficientes, insensíveis às necessidades e demandas populares e muitas vezes repressoras e corruptas. Eles direcionam essa luta na ação direta nas ruas e praças públicas, não para o campo da política institucional. Um dos cartazes presentes nas recentes manifestações do quente “Inverno Brasileiro”, que é “Os partidos não nos representam”, talvez sintetize o tremendo desgaste do sistema político-institucional brasileiro e signifique uma reafirmação dos valores essenciais do anarquismo: liberdade e igualdade, fraternidade e solidariedade.

Socialismo libertário

Para entender melhor  os dias de hoje, retomamos a história do anarquismo. De acordo com Mikhail Bakunin, um dos mais importantes pensadores e militantes da história do anarquismo, “socialismo sem liberdade é tirania e opressão; liberdade sem socialismo é privilégio e injustiça”. Essa frase sintetiza o essencial da teoria e da tradição anarquistas: a crítica radical tanto ao capitalismo quanto ao socialismo autoritário, e a luta permanente pela construção do socialismo sem abrir mão da liberdade, ao contrário, enfatizando a dimensão da autonomia individual. Daí os anarquistas sempre terem se caracterizado – e continuam hoje a se designar – como socialistas libertários.

Embora a luta pela liberdade remeta aos primórdios da história humana, o anarquismo, enquanto movimento social e político, começa a se constituir a partir de meados do século XIX, através de um conjunto de ideias e ações, de livros, periódicos e outras publicações que denunciam as mazelas sociais decorrentes do capitalismo e já esboçam propostas no sentido da construção de uma sociedade alternativa, a partir de valores do Iluminismo e da Revolução Francesa: liberdade, igualdade, fraternidade, solidariedade.

Londres, então a maior metrópole capitalista, esfumaçada e populosa, foi descrita pelo poeta inglês Shelley como semelhante ao inferno. Com efeito, a vida do proletariado urbano que vinha se formando com a Revolução Industrial era duríssima: longas jornadas, salários ínfimos, condições de trabalho estafantes e insalubres. Ao longo da primeira metade do século XIX, a indústria e as cidades foram também crescendo e se consolidando em outros países e/ou regiões da Europa. Acompanhando a formação e evolução do capitalismo industrial, vai se evidenciando e agravando a “questão social”. A penúria da nova classe operária, constituída de indivíduos expropriados da possibilidade de produzir de forma autônoma sua subsistência, precisando então se assalariar (se proletarizar) para sobreviver. O “proletário”, etimologicamente, é aquele cuja única riqueza é a sua prole. A propósito, anarquia significa ausência de governo, mas não de ordem ou de organização.

É a partir desse quadro que os trabalhadores urbanos começam a se organizar, a construir uma identidade e uma consciência de classe. Nesse processo, serão inspirados basicamente por duas vertentes do socialismo: o anarquismo e o marxismo.

À medida que se organizam, os operários vão criando associações de classe, sindicatos, fundando e mantendo jornais, revistas, escolas, bibliotecas, grupos de teatro, vão, em suma, construindo uma cultura de classe, uma cultura operária. Na sua luta cotidiana por melhores condições de vida e trabalho, uma reivindicação estratégica surge na Inglaterra e se internacionaliza: a luta pelos “três oitos”: oito horas de trabalho, oito horas de repouso e oito horas de lazer. A origem do dia 1º de maio como Dia Internacional do Trabalho está vinculada a uma greve operária em Chicago, nos Estados Unidos, em 1886, cuja principal reivindicação era a jornada de oito horas. A repressão será feroz e seis militantes anarquistas presos, julgados e executados, vindo a se tornar os “mártires de Chicago”.

O anarquismo no Brasil

Essa reivindicação chega ao Brasil, na virada do século XIX para o XX, juntamente com milhões de imigrantes europeus, que vêm “fazer a América”. Certamente, não apenas a luta pelos “três oitos” chega ao Brasil. O anarquismo, o socialismo reformista, um pouco depois o comunismo (marxista) chegam ao continente americano na bagagem (intelectual) de milhares desses imigrantes, que vêm aqui em busca de condições de vida e trabalho mais dignas. A origem estrangeira do anarquismo levará setores do patronato e membros do aparelho de Estado a qualificarem o socialismo libertário como uma “planta exótica”, que não se adaptaria ao clima brasileiro. A história logo mostraria que patrões e políticos estavam enganados. A “planta exótica” se desenvolveria com vigor.

No Brasil das primeiras décadas do século XX, os trabalhadores viviam também seu “inferno social”. Homens, mulheres e crianças passavam a maior parte de suas vidas no interior de fábricas insalubres e perigosas. As mulheres recebiam salários menores e eram vítimas frequentes de tentativas de abuso sexual. As crianças também sofriam maus-tratos.

Esse era então o campo fértil para o florescimento não só da “planta exótica” do anarquismo, como também do socialismo reformista e, pouco mais tarde, do comunismo. Deve-se acrescentar a esse quadro o fato de que ainda não haviam sido promulgadas no Brasil leis sociais abrangentes, não existia um direito trabalhista. Para atender aos interesses dos agrários, o Estado Republicano há pouco proclamado vai assumir uma feição federativa e liberal (embora não democrática). De acordo com a ortodoxia liberal, o Estado não deve intervir de forma normativa no mundo do trabalho, sendo então a “questão social” remetida para a órbita mercantil, para o âmbito privado, em suma, para o mercado. Ótimo para os patrões, péssimo para os operários. Já havia no Brasil desemprego estrutural, principalmente a partir da chegada, entre 1890 e 1920, de milhões de imigrantes europeus. 

A luta pelos “três oitos” explode no Brasil em várias greves, sendo as mais importantes a de 1903 no Rio de Janeiro, então capital federal, e a de 1907 em São Paulo. Algumas categorias profissionais conquistam a redução da jornada de trabalho. Das correntes político-ideológicas que se propõem a organizar os trabalhadores urbanos no Brasil da Primeira República o anarcossindicalismo será a que conquistará maior apoio e adesão junto à classe operária. Lideranças e militantes anarquistas estarão presentes nas maiores e mais importantes greves operárias do período, algumas envolvendo dezenas de milhares de trabalhadores, especialmente na conjuntura de 1917 a 1920.

Embora não intervenha juridicamente normatizando o mercado de trabalho, diante de greves operárias o Estado Republicano oligárquico intervém duramente, reprimindo manifestações públicas, comícios, passeatas. Prisões, espancamentos, torturas, assassinatos, invasão e fechamento de sedes de sindicatos e de jornais, deportações. A Lei Adolfo Gordo, regulamentada em 1907, viabiliza a deportação de qualquer estrangeiro cuja atividade comprometa “a ordem pública ou a tranquilidade social”. Centenas de militantes serão deportados para a Europa. Em 1924, o governo Bernardes cria a tristemente famosa Colônia da Clevelândia, no Amapá, para onde serão enviados, muitos deles à morte, milhares de brasileiros e estrangeiros, dentre os quais diversos anarquistas. O Estado brasileiro confirma a visão geral que o anarquismo tem do Estado: um mal desnecessário.

Apesar da dura repressão, as greves operárias do fim dos anos 1910 conseguem trazer a “questão social”, pela primeira vez, para as páginas de destaque da grande imprensa da época. Aos poucos, setores do patronato e membros do aparelho de Estado  vão começando a entender a necessidade de legislar em matéria social, de produzir um direito do trabalho. A década de 1920 será então um período de transição entre a vigência anterior da ortodoxia liberal e a posterior construção, nos anos 30 e 40, do trabalhismo varguista, do sindicalismo corporativista (de inspiração fascista), no qual os sindicatos operários perdem sua autonomia e natureza jurídica privada, sendo paulatinamente incorporados à estrutura pública do Estado. O anarquismo vai aos poucos perdendo, não sem resistência, sua inserção sindical.

A “nova aurora libertária” no período de duas décadas da chamada experiência democrática – do golpe que derruba o Estado Novo em 1945 ao golpe que derruba Goulart em 1964 – se limitará aos debates políticos e intelectuais e à organização de atividades culturais. O anarcossindicalismo não conseguirá recuperar seu espaço junto à classe operária.


Por Carlos Augusto Addor, professor do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense (UFF) — publicado na edição 79, de setembro de 2013

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