Um certo anarquismo surge no século
XXI e remete ao movimento das primeiras grandes greves operárias
Em pleno século XXI há um ressurgir do
anarquismo (não do anarquismo clássico). Valores libertários inspiram a
Primavera Árabe, os movimentos dos indignados e as ocupações de espaços
públicos e privados. As críticas se voltam basicamente contra dois alvos:
por um lado, a globalização neoliberal, a ganância e a insensibilidade das
grandes corporações diante da fome e da miséria de milhões de pessoas. Por
outro lado, mas complementarmente, os manifestantes, jovens em sua considerável
maioria, criticam e rejeitam sistemas político-partidários e instituições
ineficientes, insensíveis às necessidades e demandas populares e muitas vezes
repressoras e corruptas. Eles direcionam essa luta na ação direta nas ruas e
praças públicas, não para o campo da política institucional. Um dos cartazes
presentes nas recentes manifestações do quente “Inverno Brasileiro”, que é “Os
partidos não nos representam”, talvez sintetize o tremendo desgaste do sistema
político-institucional brasileiro e signifique uma reafirmação dos valores essenciais
do anarquismo: liberdade e igualdade, fraternidade e solidariedade.
Socialismo libertário
Para entender melhor os dias de
hoje, retomamos a história do anarquismo. De acordo com Mikhail Bakunin, um dos
mais importantes pensadores e militantes da história do anarquismo, “socialismo
sem liberdade é tirania e opressão; liberdade sem socialismo é privilégio e
injustiça”. Essa frase sintetiza o essencial da teoria e da tradição
anarquistas: a crítica radical tanto ao capitalismo quanto ao socialismo
autoritário, e a luta permanente pela construção do socialismo sem abrir mão da
liberdade, ao contrário, enfatizando a dimensão da autonomia individual. Daí os
anarquistas sempre terem se caracterizado – e continuam hoje a se designar –
como socialistas libertários.
Embora a luta pela liberdade remeta aos
primórdios da história humana, o anarquismo, enquanto movimento social e
político, começa a se constituir a partir de meados do século XIX, através de
um conjunto de ideias e ações, de livros, periódicos e outras publicações que
denunciam as mazelas sociais decorrentes do capitalismo e já esboçam propostas
no sentido da construção de uma sociedade alternativa, a partir de valores do
Iluminismo e da Revolução Francesa: liberdade, igualdade, fraternidade,
solidariedade.
Londres, então a maior metrópole
capitalista, esfumaçada e populosa, foi descrita pelo poeta inglês Shelley como
semelhante ao inferno. Com efeito, a vida do proletariado urbano que vinha se
formando com a Revolução Industrial era duríssima: longas jornadas, salários
ínfimos, condições de trabalho estafantes e insalubres. Ao longo da primeira
metade do século XIX, a indústria e as cidades foram também crescendo e se
consolidando em outros países e/ou regiões da Europa. Acompanhando a formação e
evolução do capitalismo industrial, vai se evidenciando e agravando a “questão
social”. A penúria da nova classe operária, constituída de indivíduos
expropriados da possibilidade de produzir de forma autônoma sua subsistência,
precisando então se assalariar (se proletarizar) para sobreviver. O
“proletário”, etimologicamente, é aquele cuja única riqueza é a sua prole. A
propósito, anarquia significa ausência de governo, mas não de ordem ou de
organização.
É a partir desse quadro que os
trabalhadores urbanos começam a se organizar, a construir uma identidade e uma
consciência de classe. Nesse processo, serão inspirados basicamente por duas
vertentes do socialismo: o anarquismo e o marxismo.
À medida que se organizam, os operários
vão criando associações de classe, sindicatos, fundando e mantendo jornais,
revistas, escolas, bibliotecas, grupos de teatro, vão, em suma, construindo uma
cultura de classe, uma cultura operária. Na sua luta cotidiana por melhores
condições de vida e trabalho, uma reivindicação estratégica surge na Inglaterra
e se internacionaliza: a luta pelos “três oitos”: oito horas de trabalho, oito
horas de repouso e oito horas de lazer. A origem do dia 1º de maio como Dia Internacional
do Trabalho está vinculada a uma greve operária em Chicago, nos Estados Unidos,
em 1886, cuja principal reivindicação era a jornada de oito horas. A repressão
será feroz e seis militantes anarquistas presos, julgados e executados, vindo a
se tornar os “mártires de Chicago”.
O anarquismo no Brasil
Essa reivindicação chega ao Brasil, na
virada do século XIX para o XX, juntamente com milhões de imigrantes europeus,
que vêm “fazer a América”. Certamente, não apenas a luta pelos “três oitos”
chega ao Brasil. O anarquismo, o socialismo reformista, um pouco depois o
comunismo (marxista) chegam ao continente americano na bagagem (intelectual) de
milhares desses imigrantes, que vêm aqui em busca de condições de vida e
trabalho mais dignas. A origem estrangeira do anarquismo levará setores do
patronato e membros do aparelho de Estado a qualificarem o socialismo
libertário como uma “planta exótica”, que não se adaptaria ao clima brasileiro.
A história logo mostraria que patrões e políticos estavam enganados. A “planta
exótica” se desenvolveria com vigor.
No Brasil das primeiras décadas do
século XX, os trabalhadores viviam também seu “inferno social”. Homens,
mulheres e crianças passavam a maior parte de suas vidas no interior de
fábricas insalubres e perigosas. As mulheres recebiam salários menores e eram
vítimas frequentes de tentativas de abuso sexual. As crianças também sofriam
maus-tratos.
Esse era então o campo fértil para o
florescimento não só da “planta exótica” do anarquismo, como também do socialismo
reformista e, pouco mais tarde, do comunismo. Deve-se acrescentar a esse quadro
o fato de que ainda não haviam sido promulgadas no Brasil leis sociais
abrangentes, não existia um direito trabalhista. Para atender aos interesses
dos agrários, o Estado Republicano há pouco proclamado vai assumir uma feição
federativa e liberal (embora não democrática). De acordo com a ortodoxia
liberal, o Estado não deve intervir de forma normativa no mundo do trabalho,
sendo então a “questão social” remetida para a órbita mercantil, para o âmbito
privado, em suma, para o mercado. Ótimo para os patrões, péssimo para os
operários. Já havia no Brasil desemprego estrutural, principalmente a partir da
chegada, entre 1890 e 1920, de milhões de imigrantes europeus.
A luta pelos “três oitos” explode no
Brasil em várias greves, sendo as mais importantes a de 1903 no Rio de Janeiro,
então capital federal, e a de 1907 em São Paulo. Algumas categorias
profissionais conquistam a redução da jornada de trabalho. Das correntes político-ideológicas
que se propõem a organizar os trabalhadores urbanos no Brasil da Primeira
República o anarcossindicalismo será a que conquistará maior apoio e adesão
junto à classe operária. Lideranças e militantes anarquistas estarão presentes
nas maiores e mais importantes greves operárias do período, algumas envolvendo
dezenas de milhares de trabalhadores, especialmente na conjuntura de 1917 a
1920.
Embora não intervenha juridicamente
normatizando o mercado de trabalho, diante de greves operárias o Estado
Republicano oligárquico intervém duramente, reprimindo manifestações públicas,
comícios, passeatas. Prisões, espancamentos, torturas, assassinatos, invasão e
fechamento de sedes de sindicatos e de jornais, deportações. A Lei Adolfo
Gordo, regulamentada em 1907, viabiliza a deportação de qualquer estrangeiro
cuja atividade comprometa “a ordem pública ou a tranquilidade social”. Centenas
de militantes serão deportados para a Europa. Em 1924, o governo Bernardes cria
a tristemente famosa Colônia da Clevelândia, no Amapá, para onde serão
enviados, muitos deles à morte, milhares de brasileiros e estrangeiros, dentre
os quais diversos anarquistas. O Estado brasileiro confirma a visão geral que o
anarquismo tem do Estado: um mal desnecessário.
Apesar da dura repressão, as greves
operárias do fim dos anos 1910 conseguem trazer a “questão social”, pela
primeira vez, para as páginas de destaque da grande imprensa da época. Aos
poucos, setores do patronato e membros do aparelho de Estado vão
começando a entender a necessidade de legislar em matéria social, de produzir
um direito do trabalho. A década de 1920 será então um período de transição
entre a vigência anterior da ortodoxia liberal e a posterior construção, nos
anos 30 e 40, do trabalhismo varguista, do sindicalismo corporativista (de
inspiração fascista), no qual os sindicatos operários perdem sua autonomia e
natureza jurídica privada, sendo paulatinamente incorporados à estrutura
pública do Estado. O anarquismo vai aos poucos perdendo, não sem resistência,
sua inserção sindical.
A “nova aurora libertária” no período
de duas décadas da chamada experiência democrática – do golpe que derruba o
Estado Novo em 1945 ao golpe que derruba Goulart em 1964 – se limitará aos
debates políticos e intelectuais e à organização de atividades culturais. O
anarcossindicalismo não conseguirá recuperar seu espaço junto à classe
operária.
Por Carlos Augusto Addor, professor do
Departamento de História da Universidade Federal Fluminense (UFF) — publicado
na edição 79, de setembro de 2013