Necessidade de reforma geral de
tributos é inadiável
O conceito de Justiça Tributária é muito simples.
Trata-se apenas de dar a cada um o que é seu, em obediência às normas
reguladoras do sistema tributário nacional. Suas regras máximas estão fixadas
na Constituição, complementadas pelo Código Tributário Nacional e reguladas
pela legislação aplicável em cada nível de poder.
No relacionamento entre fisco e contribuinte as duas partes devem
receber o que lhes cabe. Cada um de nós, contribuintes, temos o dever de
entregar aos poderes constituídos uma parte do que temos – rendimentos ou
patrimônio – para recebermos serviços que nos permitam viver na sociedade que
merecemos.
Todos esses serviços destinam-se, conforma a CF, a: “Iinstituir um
Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e
individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a
igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna,
pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na
ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias”.
Mas o nosso sistema tributário não viabiliza tais objetivos. A
legislação tributária de nosso país já chegou ao máximo dos absurdos,
ultrapassando todos os limites do bom senso. Não existe mais conserto ou
remédio para o que ainda vigora em todos os níveis de governo. Nossa carga
tributária é de tal forma desorganizada, que sequer há estatísticas ou
registros confiáveis.
Entidades representativas dos empresários exibem vistoso painel
eletrônico com o título de impostômetro, onde se registra de minuto a minuto
números que indicariam valores arrecadados. De outro lado, associação de
servidores públicos criou outro aparato igualmente vistoso, apelidado de
sonegômetro, onde estariam registrados os valores que os contribuintes estariam
surrupiando do tesouro.
Não parece que qualquer dessas iniciativas tenha resultado maior que
chamar a atenção do público, a indicar apenas uma espécie de marketing. Se o
nível de sonegação divulgado for realmente de mais de R$ 400 bilhões por ano
como já se divulgou, a carga tributária do país seria de mais de 50% do PIB,
não de menos de 40%. O pagamento desse volume de tributos nos transformaria a
todos em escravos.
Voltando ao conceito de Justiça Tributária: temos que dar ao Estado o
que é dele, não mais do que isso. Tal valor deve corresponder ao que se emprega
no atendimento do bem comum: saúde, educação, segurança e atendimento das
estruturas de uma sociedade democrática.
Numa sociedade democrática, o poder emana do povo. O Estado não se destina
à manutenção de privilégios dos ocupantes dos cargos públicos. Os membros de
todos os poderes – Legislativo, Executivo e Judiciário – são servidores
públicos, ainda que exerçam cargos de autoridade. Não mandam no país, mas
apenas exercem atos limitados pela lei.
Para que tenhamos uma visão mais
precisa desse conceito, podemos recorrer às palavras do então ministro Eros
Roberto Grau: “Meu ofício não é mais importante que o do jardineiro ou daquele
que cuida da saúde das pessoas.” (O Estado de S. Paulo,27/08/2007,
página A8). Ou seja: a igualdade de todos perante a lei não autoriza que
ninguém se julgue mais importante que outrem, ainda que o cargo que
eventualmente ocupe o seja.
Ora, se o Estado deve receber o que lhe pertence, não é razoável que a
carga tributária seja desproporcional à capacidade contributiva, nem que possa
apresentar indícios de confisco. Observem-se, a respeito, as disposições
constitucionais (CF, artigos 37 e 170). O contribuinte, pessoa física ou
jurídica, deve pagar tributos, mas deve manter em seu poder parte da riqueza
que possui ou produz, de forma a lhe permitir novos investimentos. Se alguém
recebe rendimento que lhe possibilita apenas sobreviver, sem que nada ou quase
nada lhe reste após o pagamento dos tributos, não é cidadão, mas escravo.
De igual forma, as pessoas jurídicas
não devem ser castigadas pelos seus lucros, pois, num sistema
capitalista, são os lucros que justificam os investimentos e movimentam a
economia sem o que o país não se desenvolve.
Quando os nossos governantes anunciam que o poder público vai fazer
grandes investimentos, não podemos ignorar que os recursos foram gerados pela
sociedade ou serão por ela suportados em qualquer circunstância, onerando-a
pesadamente quando as obras forem financiadas a longo prazo.
Finalmente, não existe Justiça Tributária se o resultado da arrecadação
não for administrado com seriedade. Não basta que o gestor público deixe de
cometer desvios, deixe de roubar. Precisamos que a aplicação dos tributos seja
feita com sabedoria, dando-se prioridade ao que realmente importa. Quando um
prefeito, por exemplo, aplica as verbas municipais em festas inúteis, em obras
desnecessárias, em salários de desocupados, assume a postura de um meliante,
pois desvia recursos que são do povo. Tal situação se aplica a todos os níveis
de governo.
Diante de tudo isso, vemo-nos diante da necessidade de uma ampla reforma
tributária e fiscal. Para tanto, será necessário, em breve, a convocação
de nova constituinte, uma vez que a CF de 88 já está totalmente
descaracterizada com a enorme quantidade de remendos que recebeu a título de
emendas.
Também já passou da hora de termos um Código de Defesa do Contribuinte
que garanta os direitos dos pagadores de impostos.
Nessa ampla reforma, teremos que dar também destaque especial à
necessidade de garantir mecanismos de estabilidade para as regras tributárias
que nos regem. Evitaríamos, assim, que uma Ministra do STF fosse obrigada a
fazer um desabafo surpreendente: “Neste país, nunca se sabe quanto tem que se
pagar de impostos. E isso causa infelicidade nos cidadãos e atrapalha o
crescimento." ( Ellen Gracie, 12/11/2010, do XXI Simpósio Nacional de
Estudos Tributários).
Se a insegurança no pagamento de
impostos causa infelicidade nos cidadãos e atrapalha o crescimento , todos nós
temos que assumir o compromisso de desenvolver todos os esforços de que somos
capazes para mudar essa situação.
Raul Haidar é jornalista e advogado
tributarista, ex-presidente do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP e
integrante do Conselho Editorial da revista ConJur.